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“O combate ao racismo não é uma escolha: trata-se de um compromisso da profissão”, afirma Tales Fornazier

06/05/2023 às 11h55

Em entrevista especial ao CRESS Alagoas, o Assistente Social e Doutorando em Serviço Social pela PUC/SP, Tales Willyan Fornazier Moreira, destaca o papel dos espaços de debates e ações antirracistas no âmbito dos Conselhos Regionals de Serviço Social.

Posicionando a luta contra o racismo e de defesa da construção de outra sociedade como estruturante na organização das entidades representativas do Serviço Social, o pesquisador reafirmou o papel dos Comitês de Combate ao Racismo na contribuição concreta na construção de competências teórico-metodológicas antirracistas.

As entidades têm avançado significativamente no reconhecimento da necessidade e urgência do enfrentamento ao racismo no âmbito da formação e do trabalho, construindo campanhas, materiais, documentos, debates públicos e posições coletivas que reafirmam a indissociabilidade entre as lutas contra o racismo, o capitalismo, o sexismo, a LGBTQIA+fobia”, refletiu Tales.

A entrevista aborda ainda algumas das reflexões de seu livro “Serviço Social e luta antirracista: contribuição das entidades da categoria no combate ao racismo”, em especial nos desafios desse debate em torno das entidades representativas do Serviço Social brasileiro.

Confira a entrevista na íntegra:

De que maneira a pauta e a luta antirracista tem se posicionado nas entidades representativas do Serviço Social brasileiro no último período? Quais foram os principais avanços nesse tema que você observou?

O debate acerca das relações étnico-raciais não é uma novidade no interior da profissão. É importante ressaltar que, pelo menos desde a década de 1980, assistentes sociais negras vêm pautando esse debate – a exemplo do VI CBAS de 1989 que se tornou um marco emblemático, visto que profissionais negras, que também acumulavam militância no movimento negro e de mulheres, se organizaram para apresentar teses sobre a temática no maior evento da categoria, evidenciando a necessidade da profissão reconhecer e assumir coletivamente a questão étnico-racial enquanto categoria de análise fundamental para compreensão da questão social no Brasil, tendo em vista nossas particularidades histórico sociais, assentadas no colonialismo e no escravismo, que delinearam as bases necessárias para a consolidação da sociedade de capitalismo dependente neste território.

Além disso, anterior a esse episódio, há registros de assistentes sociais negras/os que já se preocupavam com essa discussão e apontavam a necessidade de enfrentamento ao racismo. Também é importante destacar que após a “virada” na história profissional e, sobretudo, a partir da contribuição destas assistentes sociais negras, tivemos conquistas importantes como a incorporação de princípios no Código de Ética Profissional (1993) que estabelecem o compromisso com a eliminação de toda forma de preconceito e discriminação pela condição de classe, gênero, raça/etnia, sexualidade, religião, etc., fomentando o respeito à diversidade enquanto uma responsabilidade ético-política de Assistentes Sociais Brasileiros/as; a criação dos Grupos Temáticos de Pesquisa (GTPs) da ABEPSS em 2010, dentre eles, o GTP “Serviço Social, Relações de Exploração/Opressão de Gênero, Feminismos, Raça/Etnia e Sexualidades”, que cumpre um propósito inconteste para o avanço de produções e pesquisas na área do Serviço Social, tanto no âmbito da graduação quanto da pós-graduação, publicações em periódicos, livros, etc.; a campanha de Combate ao Racismo realizada pelo CFESS em 2003 intitulada “O Serviço Social mudando o rumo da história”; além disso, no ano de 2010 durante o 39º Encontro Nacional do conjunto CFESS/CRESS em Florianópolis-SC, a categoria profissional assumiu posição favorável às políticas de ações afirmativas, bem como à descriminalização e legalização do aborto – que, como apontam os índices, acometem particularmente as mulheres negras, pois são as que mais morrem com a realização de abortos inseguros.

Contudo, avaliamos que é nos meados desta última década que tivemos um avanço expressivo desse debate na categoria, especialmente pelo fato das entidades profissionais estarem num movimento importantíssimo de reconhecimento da urgência em avançarmos no debate das relações étnico-raciais no campo da formação e do trabalho profissional, enquanto pressuposto para o fortalecimento da própria direção emancipatória do Projeto Ético-Político. Destacamos que após a campanha do conjunto CFESS-CRESS “Assistentes Sociais no Combate ao Racismo” (2017-2020), a produção dos “Subsídios para o debate sobre a questão étnico-racial na formação em Serviço Social” e do documento sobre “As cotas na pós-graduação: orientações da ABEPSS para o avanço do debate”, ambos produzidos pela ABEPSS (2017-2018), a categoria vem fazendo um permanente processo de crítica e autocrítica e dado relevo importante a esse debate, incorporando nos currículos, tanto no âmbito da graduação e da pós, nas produções acadêmicas e no cotidiano do trabalho profissional.

Também é notório a centralidade que essa pauta vem assumindo nas gestões posteriores das entidades e destacamos importantíssimos avanços realizado pela última gestão da ABEPSS (2021-2022), quais sejam: a construção da Plataforma Antirracista no site, com indicação de materiais sobre a questão étnico-racial por matérias/áreas tal como apontado nas Diretrizes Curriculares da ABEPSS (1996), bem como a pesquisa "A inserção da educação para as relações étnico-raciais no âmbito da pós-graduação na área de Serviço Social nos últimos cinco anos (2017-2022)", realizada em conjunto com os Programas de Pós-graduação (PPGs). Além de uma série de debates e ações que vêm sendo construídas pelo conjunto CFESS-CRESS e também pela ENESSO na direção de fortalecer uma formação efetivamente antirracista, cujos avanços também se apresentam como uma potente possibilidade de coletivizar as lutas e reafirmar a direção emancipatória do Projeto Ético-Político construído pelo Serviço Social renovado nas últimas décadas, haja vista o acúmulo que vem sendo cada vez mais consolidado na profissão acerca do entendimento de que não há oposição entre as lutas contra o racismo, o capitalismo, o sexismo e a LGBTQIA+fobia.

Como a presença de maneira mais articulada da luta antirracista na ordem do dia das entidades do Serviço Social podem potencializar o debate e ações concretas com a categoria e estudantes de Serviço Social?

Como evidenciado anteriormente, é fato que temos construído avanços importantes no período mais recente, especialmente pelo fato de que as entidades profissionais cada vez mais vêm incorporando esse debate de forma coerente, responsável, qualificada e toda essa construção coletiva tem sido decisiva para ampliar a discussão e qualificar a compreensão da categoria profissional acerca da questão étnico-racial. Nesse aspecto, as entidades têm avançado significativamente no reconhecimento da necessidade e urgência do enfrentamento ao racismo no âmbito da formação e do trabalho, construindo campanhas, materiais, documentos, debates públicos e posições coletivas que reafirmam a indissociabilidade entre as lutas contra o racismo, o capitalismo, o sexismo, a LGBTQIA+fobia, evidenciando que a discussão sobre as relações étnico-raciais precisa compor de forma transversal a formação dos/as assistentes sociais brasileiros/as para, de fato, apreendermos a realidade numa perspectiva crítica e de totalidade histórica, conforme aponta as Diretrizes Curriculares da ABEPSS (1996).

Todo esse acúmulo, que é caudatário não apenas da centralidade que essa discussão tem ocupado na agenda política das entidades, mas de toda construção das aguerridas mulheres negras que são pioneiras nesse debate no interior da profissão, tem impactado concretamente no aumento de pesquisas e produções na área, na incorporação da discussão nos cursos de graduação e pós, mas também na própria organização política da categoria. Exemplo disso são os Comitês de Assistentes Sociais no Combate ao Racismo, que foram construídos em alguns CRESS a partir da campanha do triênio (2017-2020), mas em especial a construção da Frente Nacional de Assistentes Sociais no Combate ao Racismo em 2020, enquanto desdobramento dessa articulação política da categoria para o enfrentamento ao racismo. Isso significa que, pela primeira vez, a profissão passa se aquilombar e se organizar nacionalmente para construir ações e estratégias de combate ao racismo, reafirmando a direção emancipatória do Serviço Social brasileiro.

Nesse diapasão, compreendemos que o papel das entidades é continuar fazendo esse movimento e avançando no debate – e aqui chamamos atenção para a lacuna ainda mais significativa que temos no debate dos povos indígenas, ribeirinhos e quilombolas no âmbito das relações étnico-raciais. Ou seja, temos avançado significativamente, é preciso reconhecer isso, mas na mesma intensidade também é preciso olharmos para o passado, reconstruir o presente e projetar o futuro, como nos ensina Sankofa, e nessa construção dialética veremos que ainda temos um longo caminho de lutas e construções políticas para avançarmos, de fato, na construção de uma sociedade radicalmente livre e humanamente emancipada.

Seu livro publicado recentemente buscou entender o lugar que a temática étnico-racial ocupa no interior das entidades. Quais principais limites você conseguiu observar durante a pesquisa que ainda se coloca como um desafio a ser superado no próximo período?

A pesquisa realizada no mestrado, que deu origem ao livro “Serviço Social e luta antirracista: contribuição das entidades da categoria no combate ao racismo”, pôde evidenciar que o debate étnico-racial vem tendo uma ascendência importante na categoria, em especial a partir do protagonismo das entidades e toda construção que estudantes, profissionais e pesquisadoras/es negras/os, indígenas e quilombolas vêm empreendendo de forma coletiva no último período. Durante a pesquisa foi possível observar que, num todo, apesar dos desafios e contradições no interior das entidades que, por sua vez, podem obstaculizar um avanço mais expressivo do debate, as entidades vem consolidando a discussão, construindo um caminho cada vez mais em ascendência para a questão étnico-racial – o que ratifica a atualidade, coerência e firmeza ideológica da direção social estratégica construída pelo Serviço Social Brasileiro nos últimos 40 anos, cujo marco emblemático é o “Congresso da Virada” de 1979.

Entretanto, é preciso também não perdermos de vista que esse é um campo permanente de disputa e o avanço contínuo dessa pauta dependerá da organização e tensionamento coletivo da categoria. Não podemos nos esquecer que temos um imenso desafio a enfrentar, dentro e fora da profissão, que é desmistificar o falacioso mito de que vivemos numa democracia racial. Esse mito produziu em nossa sociedade uma naturalização das desigualdades vivenciadas por grupos socialmente racializados, como se as populações negras e indígenas tivessem as mesmas oportunidades e, por isso, as diversas formas de iniquidades vivenciadas por esses grupos fossem decorrentes da falta de esforço ou de uma suposta baixa-moralidade. Essas concepções também estão presentes na profissão, disputando a direção hegemônica do Projeto Ético-Político, pois não somos uma ilha isolada da sociedade e sabemos que se a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante, esta não deixa ser mediada e atravessada pelo racismo. Nessa direção, visualizamos este como um dos principais desafios que precisam ser superados na sociedade e na profissão e é exatamente por isso que as entidades, enquanto guardiãs essenciais da direção emancipatória construída pelo Serviço Social renovado, possuem papel central nesse debate e nessa luta!

Recentemente o CRESS Alagoas tem em seus espaços o Comitê de Combate ao Racismo, com composição de assistentes sociais da base e integrantes da gestão. Qual seu olhar sobre esses instrumentos no interior do Regional e quais devem ser as principais responsabilidades e tarefas desses grupos, com atuação específica em um Conselho de entidade?

Avalio que a construção dos Comitês de combate ao racismo no âmbito dos CRESS é uma tarefa antirracista estratégica indispensável para o conjunto CFESS-CRESS e para a profissão, uma vez que se trata não apenas da materialização da pauta de enfrentamento ao racismo em ações concretas, mas também é um lócus privilegiado de aproximação à base da categoria profissional. Nessa relação, os Comitês podem contribuir de forma decisiva para a construção de competências teórico-metodológicas, ético-políticas e técnico-operativas efetivamente antirracistas, visto que o combate ao racismo não é uma escolha: trata-se de um compromisso da profissão.

É preciso não perdermos de vista que o racismo, enquanto elemento estrutural e estruturante das nossas relações, também vai se colocar no âmbito das instituições em que atuamos, fazendo parte da dinâmica “normal” do funcionamento destas instituições. Ou seja, as instituições em que atuamos são também hegemonizadas pela ideologia racial dominante e o racismo institucional se apresenta na própria dinâmica “normal” destas instituições. Nesse aspecto, não conseguirmos fazer uma leitura crítica e antirracista da realidade, considerando tais elementos brevemente sinalizados, significa que não só iremos contribuir para manutenção/reprodução do racismo institucional, mas também para a perpetuação das desigualdades históricas vivenciada pelas populações racializadas nesse país.

Obviamente que não é novidade que atuamos em contextos contraditórios, que a direção do nosso projeto profissional é tensionado no cotidiano, mas também é preciso lembrar que, nos limites do nosso trabalho e, numa mesma atividade, podemos fortalecer os interesses da instituição ou da população que atendemos. É nessa relação contraditória, mas ao mesmo tempo estratégica que temos com a população, que é importante investirmos em ações antirracistas e os Comitês cumprem um papel importantíssimo de qualificar nosso trabalho para o efetivo enfrentamento ao racismo.

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